Espiritualidade da Libertação

15/03/2010 00:08

 

Espiritualidade da libertação

 

 

 

            A espiritualidade, no sentido estrito e profundo do termo, é o domínio do Espírito. Se “a verdade nos há de fazer livres” (Jo 8,32), o Espírito é que “nos conduzirá à verdade completa” (Jo 16,3), nos levará a liberdade plena. À libertação de tudo o que nos impede de realizar-nos como homens e mulheres, filhos e filhas de Deus, e à liberdade de amar e entrar em comunhão com Deus e com os demais. Levar-nos-á pelo caminho da libertação, pois “onde está o Espírito do Senhor, ai está a liberdade” (2Cor 3,17).

 

Nesse sentido, a espiritualidade latino-americana se caracteriza claramente por uma referencia fundamental constante à realidade. Uma paixão pela realidade, um “realismo” elementar. Trata-se de uma referencia dupla, tanto de origem como de uma finalidade. De origem: porque toda ação, toda abordagem, toda teoria, todo estudo, toda vivencia, todo projeto...deve partir da realidade. De finalidade: porque se trata sempre de um processo que aponta definitivamente para um objetivo central: voltar à realidade, eis o realismo nada mágico da espiritualidade latino-americana. [1]

 

            Partir da realidade significa também partir de baixo para cima, quer dizer indutivamente, a partir da experiência da realidade, pela participação a partir da base, não dedutivamente, nem de laboratório intelectual, nem de decisões verticais da autoridade. Significa também partir de dentro para fora, quer dizer, por um procedimento conscientizador, que busca o desenvolvimento autogerido de pessoas e da comunidade, não de forma autoritária, imposta e compulsiva.

            Não basta apenas falar da realidade fora de seu contexto, mas sim de uma análise, a análise da realidade marca a superação da aceitação acrítica da realidade, da passividade, da resignação, da ingenuidade política. É a busca constante das causas históricas e estruturais, as raízes internas e profundas que partem do passado, que vem mais de trás e de mais de dentro. Por causas estruturais entende-se a raiz de toda a problemática não apenas a superficialidade da realidade.

            A atitude de análise permanente da realidade social e a peculiaridade concreta desta análise são traços de uma vontade libertadora latino-americana para uma posição ética frente a realidade. A partir dessa experiência, a espiritualidade libertadora é composta por quatro momentos: a) a percepção da realidade fundamental, b) indignação ética diante da realidade, c)a percepção de uma experiência inevitável, d) a tomada de posição ou opção fundamental.  

            Quando se fala de percepção da realidade fundamental, quer dizer da realidade crua e radical. Uma realidade que afeta a pessoa diretamente, que provoca uma reação, difícil de ser contida. Vale aqui dizer que a realidade latino-americana se torna um elemento fundamental para uma resposta concreta, frente a experiência de pobreza e exclusão enfrentada em nosso continente. A indignação ética vem num segundo momento que partir da percepção radical da realidade, há um comprometimento, uma compreensão de si mesmo, ou melhor, a partir do sofrimento do outro eu me encontro e me faço responsável por tal realidade.

Uma espiritualidade da libertação deve estar impregnada de vivencia de gratuidade. A comunhão com o Senhor e com todos os homens é, antes de tudo, um dom. Daí a universalidade e a radicalidade da libertação trazida por ele. Um dom que longe de ser um chamado a passividade, exige uma atitude vigilante.[2]

 

            Uma indignação ética radical vem de dentro do ser humano, não é apenas ideológica, mas uma indignação que alguém percebe que sente pelo simples fato de ser humano, de forma que se não a sentisse não se sentiria humano. Todavia, tal indignação não fica presa a si mesma, como um sentimento estéril, ou apenas um encantamento momentâneo que não gera nenhuma ação. O sofrimento provocado pela pobreza, exploração e exclusão nos afeta, nos sacode, nos comove no mais profundo do nosso ser. Sentimos que não podemos mais tolerar, conviver ou pactuar com a injustiça, porque seria uma traição de nós mesmos. Então vem, inevitavelmente uma tomada de posição do sujeito. Em outras palavras uma opção, porque perante a realidade exigente é preciso uma tomada de partido.

 

Nosso continente, por não ser cartesiano, não é teórico. Por ser vivencial, é práxico. A “economia do dom” é uma herança indígena. Não basta dizer a amizade e cumprimentar. É preciso dar é dar-se. [3]

 

 

            Contudo, essa tomada de posição também pode ser negativa: à atitude contrária à indignação ética é o fechamento do coração, a falta de sensibilidade, a indiferença. A partir dessa experiência fundamental a pessoa toma sua posição diante da realidade dos pobres. E com isso define a si mesma. Define qual será a sua posição diante dos valores absolutos. Fixa qual será a sua causa, o sentido de sua vida. Há portanto um lugar “antropológico” da espiritualidade libertadora, que é a realidade concreta dos pobres. Com a tomada de lado à pessoa se auto-define e se define também diante de Deus. É a Deus que se encontra nessa experiência.

            A perspectiva dos pobres passa a ser um determinante em nosso modo de pensar. Essa espiritualidade vem a ser, portanto uma espiritualidade muito localizada, localizada concretamente no”lugar social” dos pobres. Todos os elementos da vida, da cultura, da política, da sociedade, da religião, passam da abstração ou de uma certa neutralidade para uma situação no lugar social dos pobres. É a resposta à pergunta pelo “donde”, pelo lugar que escolhemos para olhar o mundo, para interpretar a história e para localizar nossa práxis de transformação. Tal transformação desemboca na “Militância”, uma atitude de serviço no horizonte das grandes causas do nosso povo. Um serviço que leva em conta a situação dos povos e seus progressos históricos. Um serviço que valoriza as organizações dos mesmos povos, suas reivindicações, e que entra na reivindicação de tudo o que for justiça, igualdade, identidade, alteridade, projeto de nova sociedade. Não é só disponibilidade, mas é servir organizadamente.

 

É um serviço político, revolucionário inclusive. O militante é capaz de ir percebendo constantemente o clamor do povo, suas reivindicações, e esta disposto a entrar em sua marcha, em seus processos, em suas lutas concretas. [4]

 

            Em síntese podemos dizer que uma autentica espiritualidade libertadora, irá percorrer o caminho de conversão ao próximo, e nele ao Deus da vida, essa gratuidade que permite encontrar com plenitude os demais, esse único encontro criador da comunhão dos homens e mulheres entre si e com Deus, a qual é fonte da alegria cristã. O Magnificat pode exprimir bem essa espiritualidade da libertação. Um texto de ação de graças pelos dons do Senhor, exprime humildemente a alegria de se saber amado por Ele: “Exulta de jubilo o meu espírito em Deus meu salvador, porque ele olhou para a humildade de seu servo.porque fez em mim maravilhas o Poderoso” (Lc 1,47-49). Mas ao mesmo tempo é um dos textos de maior conteúdo político revolucionário do Novo Testamento. Essa ação de graças e essa alegria estão estreitamente ligadas à ação de graças libertando os oprimidos e humilhando os poderosos: “Derrubou os poderosos seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias” (Lc 1,52-53). O futuro da história está na linha do pobre e do espoliado. A libertação autentica será obra do próprio oprimido, nele o Senhor salva a história. Portanto, a espiritualidade da libertação terá sempre como ponto de partida a espiritualidade dos anawin.

 

 

 

Bibliografia:

C.Boff. Os pobres e suas práticas de libertação. Em: PIXLEY-BOFF. Opção pelos pobres. Petrópolis, Vozes 1987.

 

 

CASALDÁLIGA, Pedro. VIGIL, José Maria. Espiritualidade da Libertação. Coleção Teologia e Libertação. Série III. 4º ed. Editora Vozes.  

 

FIORES, de Stefano. A Nova espiritualidade.  As novas espiritualidades na Igreja desafiam o futuro. Paulus,1999.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                     

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ORESTE



[1] CASALDÁLIGA,Pedro. VIGIL, José Maria. Espiritualidade da Libertação. Coleção Teologia e Libertação. Série III. 4º ed. Editora Vozes.  p.43s;

[2] FIORES, de Stefano. A Nova espiritualidade.  As novas espiritualidades na Igreja desafiam o futuro. Paulus,1999. p.147s;

[3] CASALDÁLIGA,Pedro. VIGIL, José Maria. Espiritualidade da Libertação. Coleção Teologia e Libertação. Série III. 4º ed. Editora Vozes.  p.74s;

 

[4] C.Boff. Os pobres e suas práticas de libertação. Em: PIXLEY-BOFF. Opção pelos pobres. Petrópolis, Vozes 1987, p. 230-247.